terça-feira, 30 de outubro de 2018

Noticia: Em guerra econômica, milhões são arremessados à fome no Iêmen

Com o peito arfando e os olhos desfocados, o menino de três anos estava deitado em silêncio no leito de uma enfermaria de hospital na cidade de Hajjah.
O pai dele, Ali al-Hajaji, o contemplava ansioso. Hajaji já tinha perdido um filho para a epidemia de fome que varre o Iêmen. Temia que o segundo estivesse por sucumbir.
Não era por falta de comida na região: as lojas em torno do hospital estavam repletas de produtos, e os mercados estavam lotados. Mas Hajaji não tinha condições de comprar nada, porque os preços estão subindo rápido demais.

A guerra devastadora no Iêmen vem recebendo mais atenção, por conta da indignação causada pelo assassinato de um dissidente saudita em Istambul, que despertou o interesse por ações sauditas em outros lugares.

Especialistas em assistência e representantes da ONU dizem que uma forma mais insidiosa de guerra vem sendo travada no Iêmen, uma guerra econômica.

Sob a liderança do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, a coalizão liderada pelos sauditas e seus aliados no Iêmen impôs uma série de medidas econômicas punitivas com o objetivo de erradicar os rebeldes houthis que controlam o norte do país.

Essas medidas, que incluem bloqueios periódicos, restrições severas a importações e a suspensão dos salários de cerca de um milhão de funcionários públicos, arremessam milhões à pobreza.

“Agora existe perigo claro e imediato de uma grande e iminente onda de fome que engolfará todo o Iêmen”, disse Mark Lowcock, subsecretário de assuntos humanitários da ONU, ao Conselho de Segurança da organização.

Cerca de oito milhões de iemenitas já dependem de assistência alimentar de emergência para sobreviver, ele disse, e o número pode em breve subir a 14 milhões, o equivalente a metade da população.

Os sinais são onipresentes, e não respeitam fronteiras de classe, tribo e região. Professores universitários cujos salários não estão sendo pagos lançam apelos desesperados por ajuda nas redes sociais. Médicos e professores são forçados a vender suas reservas de ouro, suas terras ou seus carros para manter as famílias alimentadas.

Das cerca de dois milhões de crianças mal nutridas, 400 mil foram classificadas como em condição crítica e esse número deve subir em mais 100 mil nos próximos meses.

“Estamos sendo esmagados”, disse Mekkia Mahdi, médica que opera uma clínica de saúde em Aslam, cidade empobrecida no nordeste que foi invadida por refugiados que estão fugindo dos combates em Hodeida, um porto cerca de 150 km ao sul.

As autoridades sauditas defendem as ações de seu país, mencionando disparos de foguetes pelos houthis, um grupo armado que defende a vertente zaidi do islamismo, uma variedade da doutrina xiita que a Arábia Saudita, uma monarquia sunita, vê como ligada ao seu rival regional, o Irã.


Quando o filho de Hajaji adoeceu, com diarreia e vômitos, o pai desesperado recorreu a medidas extremas.

Seguindo conselhos dos líderes de sua aldeia, ateou fogo a um graveto e enterrou sua ponta incandescente no peito de Shaher, um remédio popular para drenar o “sangue negro” de seu filho.

“Se você não tem dinheiro e seu filho está doente, se dispõe a acreditar em qualquer coisa”, disse Hajaji.

No passado, os homens da aldeia Juberia trabalhavam na Arábia Saudita, cuja fronteira fica a 130 km de distância. Costumavam ser tratados com desdém pelos seus ricos empregadores sauditas, mas tinham salários. Hajaji trabalhava em um canteiro de obras no subúrbio de Meca.

Quando a guerra irrompeu, em 2015, a fronteira foi fechada. No ano passado, uma mulher morreu de cólera, vítima de uma epidemia que infectou 1,1 milhão de iemenitas. Em abril, um ataque aéreo da coalizão saudita atingiu uma festa de casamento no distrito, matando 33 pessoas, entre as quais a noiva.

Mas para Hajaji, que tinha cinco filhos de menos de sete anos, o golpe mais devastador foi o econômico.

Ele viu a moeda nacional, o riyal, perder metade de seu valor nos últimos 12 meses, causando uma disparada de preços. De repente, os mantimentos começaram a custar duas vezes mais caro do que no começo do ano.

Inicialmente, ele recorreu à generosidade dos vizinhos. Em seguida, fez cortes na alimentação da família, que consistia apenas de pão, chá e halas, uma folha de uva que sempre foi fonte de alimento mas agora passou a ocupar papel central em todas as refeições.

Seu primeiro filho, Shaadi, logo adoeceu, com diarreia e vômitos, sintomas clássicos de subnutrição. Hajaji queria levar o menino de quatro anos ao hospital, mas isso estava fora de questão: os preços do combustível subiram 50% no ano passado.

Shaadi foi a primeira pessoa da aldeia a morrer de fome.

Poucas semanas depois, quando Shaher adoeceu, Hajaji estava determinado a fazer alguma coisa.

Quando o tratamento por queimadura não funcionou, ele carregou seu filho pela trilha pedregosa até uma clínica de saúde, que não estava equipada adequadamente para a tarefa.

Por isso, a família conseguiu US$ 16 emprestados para ir ao hospital de Hajjah.

Em 2016, o governo iemenita, que tem o apoio da Arábia Saudita, transferiu as operações do banco central do país de Sanaa, controlada pelos houthis, para Áden, no sul.

O banco, cujas políticas são dirigidas pela Arábia Saudita, disse um importante funcionário ocidental, começou a imprimir vastas quantias de dinheiro novo —pelo menos 600 bilhões de rials, de acordo com um funcionário.

O dinheiro novo causou uma espiral inflacionária que erodiu o valor das economias que restassem às pessoas.

O banco também suspendeu os pagamentos de salários a funcionários do governo em áreas sob controle dos houthis, onde 80% da população iemenita vive. Já que o governo é o maior empregador do país, centenas de milhares de famílias se viram sem renda.

Nos últimos 20 anos, a ONU decretou dois estados oficiais de fome, na Somália e Sudão do Sul. Uma avaliação que a organização divulgará na metade de novembro vai determinar o quanto o Iêmen está perto de se tornar o terceiro.
Fonte: THE NEW YORK TIMES


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